Encosto a cabeça no travesseiro, acendo a luz do abajur,
espero o cão acomodar o sono no almofadão, apago a luz e num suspiro lanço um
sorriso no escuro.
Tudo está no seu lugar! A casa prendeu o botão, o chão foi
varrido das sujeiras acumuladas nesses três dias de ausência. Limpou-se o
vômito do gato guloso que roeu a embalagem de ração. O susto com o cheiro da
comida azeda do cão passou depois que ele encheu a pança, avidamente, com sardinha misturada com farinha de
rosca(o que a mãe da criatividade nos obriga a inventar!). A gata cirurgiada(se não existia isso passa a existir
agora) saiu de seu triste isolamento na gaiola do veterinário, onde ficou por
três noites, pobrezinha, para não apanhar do gato gulosão. Um pano molhado
limpa mal e rapidamente a trilha onde passa o senhor bispo.
Enquanto o filho
avisa a esposa que chegamos depois de vencer um “puta engarrafamento” eu nem
sei para que lado virar e dar conta de tantas coisas a fazer antes de
considerar que este voltará a ser o meu ninho e de meus patudinhos.
Há menos de duas horas eu estava ansiosa esperando a
liberação. Agora pareço uma faxineira cansada e mal treinada, contratada às pressas. Uma
banana mastigada sem medo para que o vazio não cause nova crise(vade retro!). Lixo que foi largado no meio da pia, louça sem lavar nem
guardar, chinelo atravessado no tapete, trapos e panos dos bichos esticados
como bandeiras protestando contra o abandono. Nessas horas a lista de prioridades se define.
O primeiro a lançar sua incontida saudação foi o cão, que de
repente descobriu que nada disso de abandono: Ela voltou!!!! Subir pelo ombro
ou lamber o rosto? Oferecer a orelha ou deitar de barriguinha? Braços e abraços
desenrolados e só depois de um banho purificador e simbólico eu me dou o
direito de sentar e comer, decentemente, alguma coisa. Nada na geladeira que
eu pudesse comer. CREMOSO, disse o poderoso doutor, separando as sílabas e
VOLTE SEMPRE QUE QUISER, disse alto ao sair. Pelo menos temos humor.
Reconhecer a forma da cama, a textura da fronha, o cheirinho
de suas roupas que nada tem de antisséptico, acomodar-se sem medo de cair da
cama. Eu confesso, aquelas camas são altas demais, são estreitas demais. Cada
vez que eu me viro nelas sinto o medo subir pelos quadris. Parece que meus
joelhos vão crescendo e vou parecer batata podre caída no chão. Como dormir com
aqueles travesseiros que escorregam debaixo de sua nuca, não param debaixo de
sua orelha, não afundam com o peso de sua cabeça? Como dormir com aquela
rotina de leva e traz coisas a cada quarto, a cada quarto de hora?
Agora tudo está no seu lugar. Reconheço o estado de graça
por ter superado mais uma e estar em casa, saída de mais um pesadelo. Apenas quatorze dias depois de enterrar a mãe, saio à procura de socorro para ir ao
hospital, dobrada de dores. Velhas inimigas desde a cirurgia em 2003. Aprendi a fingir
que estou num teatro e que em breve a apresentação vai terminar. Não diminui a
dor, mas ajuda na passagem dos dias, que deveriam ser dois e viraram três. Aprendi
a fazer o que é possível a distância e deixar o resto para consertar, se possível.
Isso mantém a pressão estável e não assusta o doutor.
Então, hoje estou em casa outra vez. Apago os dias que me
tiraram daqui. O gato disputa uma ponta de cobertor(sim, voltamos aos 14
graus). O cachorrinho dorme cansado de esperar por mim e de barriguinha cheia.
O cobertorzinho mal se mexe, tamanho o cansaço da espera. Resmungo baixinho,
com a garganta ainda raspando por ter ficado três dias sem comer nem beber
absolutamente necas: What a wonderful world e fecho os olhos.
É preciso sempre reconhecer o estado de felicidade
e aplicar o que repassei a uma das enfermeiras: encontre sempre um motivo por
dia para comemorar.
VIVA! Estou em casa.
Hoje, um dia depois da volta, estico esse texto jackkerouackiano na telinha e encerro o capítulo.
Uma voz que vem do ombro esquerdo, cochicha debochada: Então,
porque você não conseguiu dormir essa noite, hein espertinha?